Rev. Adm. Saúde (On-line), São Paulo, v. 20, n. 78: e206, jan. – mar. 2020, Epub 31 mar. 2020

http://dx.doi.org/10.23973/ras.78.206

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Auditoria médica em hospital geral de médio porte: análise das glosas hospitalares

Medical audit in a medium-sized general hospital: analysis of hospital glosses

 

 

Ricardo Larroyed de Oliveira, Elisabeth Maria Nardelli de Oliveira

 

1. Médico, mestre em saúde coletiva. Médico da Secretaria Municipal de Saúde de São Bento do Sul SC

2. Psicóloga. Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de São Bento do Sul SC

 

 

 

RESUMO

A auditoria médica é uma atividade que avalia o ato médico e procedimentos correlatos, com vistas a auxiliar a gestão no equilíbrio entre custos e qualidade da assistência à saúde. O conhecimento sobre as glosas hospitalares pode auxiliar os médicos auditores na identificação das irregularidades e os gestores na otimização de recursos. O objetivo deste trabalho é descrever as glosas ocorridas nas contas hospitalares de um hospital filantrópico de médio porte e seus desdobramentos sobre os resultados financeiros da instituição, no período compreendido entre fevereiro a julho de 2018. O serviço de auditoria produziu 14 relatórios, onde foram avaliados 251 prontuários médicos, que abrangeram 11,1% das internações. O tipo de auditoria identificada foi a “retrospectiva” devido ao critério de seleção dos prontuários. Foram aplicadas glosas hospitalares em 146 (58,2%) das internações, devido a identificação de 167 constatações de irregularidades (média de 1,14 por prontuário), que foram agrupadas em 16 modalidades. A maioria estava relacionada ao registro irregular do procedimento principal (27,5%) e a ausência de documentação comprobatória (21,6%). O valor das glosas, referente somente aos procedimentos criticados, atingiu 2,06% do faturamento decorrente das internações pelo SUS no período. Todavia, as irregularidades também podem levar a complicações legais e éticas, com custos elevados à curto e longo prazo. O conhecimento da frequência e descrição das glosas hospitalares pode fomentar a busca ativa dos prontuários, potencializando a identificação de irregularidades, e na implementação de sistemas de análise das contas hospitalares, reduzindo as perdas e prevenindo questões legais. Desta forma, auxiliando médicos auditores e gestores e, por consequência, o próprio usuário.

Palavras-chave: Auditoria Médica; Gestão em Saúde; Sistema Único de Saúde.

 

ABSTRACT

The medical audit is an activity that evaluates the medical act and related procedures in order to assist the balancing between costs and quality of health care. The knowledge of the hospital glosses can assist medical auditors in identifying irregularities and health managers in optimizing resources. The objective of this paper is to describe the irregularities in the hospital accounts of a medium-sized philanthropic hospital and their consequences on the institution's financial results, from February to July 2018. The medical audit service produced 14 reports, which evaluated 251 medical records, covering 11.1% of the hospitalizations. The type of audit identified was the “retrospective” due to the selection criteria of the medical records. Hospital glosses were applied in 146 (58.2%) of the hospitalizations, due to the identification of 167 findings of irregularities (average of 1.14), which were grouped into 16 modalities. Most were related to the irregular registration of the main procedure (27.5%) and the absence of supporting documentation (21.6%). The value blocked by the hospital glosses, referring only to the criticized procedures, reached 2.06% of the hospital revenues in the period. Furthermore, irregularities can also lead to legal and ethical complications, with high costs in the short and long term. The knowing of the description and frequency of hospital glosses can promote a more effective search of medical records, enhancing the identification of non-compliance. It can also promote the improvement of the analysis system of hospital bills, in order to reduce losses and prevent legal issues. Thus, assisting medical auditors, health managers and, consequently, the patient himself.

Keywords: Medical Audit; Health Management; Unified Health System

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

O Sistema Único de Saúde (SUS) objetiva ofertar à população brasileira atendimento integral e acesso universal aos serviços de saúde, por meio da gestão descentralizada e financiamento das três esferas de governo (1). Esta coparticipação dos entes federados permitiu ampliar o acesso aos serviços de saúde, mas persiste desafios relacionados à aplicação dos recursos, com vistas a obter ganhos de eficiência, eficácia e efetividade (2).

A necessidade do monitoramento da aplicação dos recursos e dos resultados obtidos fomentou a implementação dos serviços de auditoria no governo federal, estados e muitos municípios. O objetivo destes serviços é auxiliar os gestores no controle e avaliação dos recursos, proporcionando oportunidades de melhoria dos serviços e programas de saúde, com vistas a garantia do acesso e qualidade da atenção à saúde (3).

As atividades de auditoria são conduzidas, predominantemente, por médicos e enfermeiros. A auditoria médica e de enfermagem avaliam o equilíbrio entre a qualidade da assistência e os custos associados, mas com peculiaridades inerentes a cada profissão. A auditoria de enfermagem foca o processo de trabalho de enfermagem, associada a ações de educação contínua e aperfeiçoamento da assistência (4). Na auditoria médica o foco é o ato médico e procedimentos correlatos, associado a avaliação crítica da compatibilidade entre diagnósticos e procedimentos (5,6).

A função do médico auditor é regulada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da resolução CFM nº 1.614/2001. Não é permitido ao médico auditor coibir o trabalho dos profissionais, por meio do veto ou modificação de procedimentos, exceto quando em benefício do usuário. Todavia, compele o profissional a solicitar informações e emitir recomendações frente a constatações de improbidades ou irregularidades (6).

Além das questões éticas, o médico auditor deve considerar as normas do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (DENASUS), componente federal do Sistema Nacional de Auditoria (SNA). A identificação de irregularidade determina a ação administrativa de “glosa hospitalar”, que é o bloqueio total ou parcial da conta hospitalar. A penalidade pode ser revertida ou mantida, na dependência das justificativas apresentadas pelo prestador de serviço (7).

A identificação de atos ilegais, ilegítimos, práticas antieconômicas, indevidas e má fé é um trabalho complexo, que exige conhecimento técnico da profissão e da legislação vigente. Para auxiliar os auditores nesta tarefa, o DENASUS descreveu as glosas mais frequentes no trabalho de auditoria do SNA. Contudo, podem ocorrer situações singulares, impondo ao auditor analisar a regularidade ou a irregularidade dos atos praticados pelos prestadores de serviço (8).

Neste contexto, estudos sobre as glosas hospitalares podem auxiliar o médico auditor, pois permitem refinar a descrição das constatações de irregularidade e o compartilhamento de informações sobre situações singulares. Para os gestores dos serviços de saúde possibilita o monitoramento dos índices e das origens das glosas hospitalares, contribuindo na diminuição do desperdício e na aplicação dos recursos (9).

O objetivo deste artigo é descrever as glosas ocorridas nas contas hospitalares de um hospital filantrópico de médio porte e seus desdobramentos sobre os resultados financeiros da instituição, no período compreendido entre fevereiro a julho de 2018.

 

METODOLOGIA

A pesquisa é um estudo observacional, retrospectivo e de abordagem quantitativa. No estudo, foram conduzidos o cruzamento e a análise dos dados dos relatórios de auditoria da Secretaria Municipal de Saúde e da produção de um hospital filantrópico de médio porte de São Bento do Sul (SC), constantes no Sistema de informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), no período de fevereiro a julho de 2018.

As variáveis selecionadas nos relatórios de auditoria foram: código identificador da Autorização de Internação Hospitalar (AIH), competência da apresentação (mês de registro da AIH no SIH/SUS), status de conformidade e descrição das irregularidades. No SIH/SUS as variáveis selecionadas foram: ano/mês de processamento, AIH aprovadas, valor total e valor médio da AIH.

O valor glosado corresponde somente aos procedimentos criticados e não ao total da conta hospitalar e foi calculado de acordo com as recomendações do serviço de auditoria, associado ao respectivo valor no Sistema de Gerenciamento da Tabela Unificada de Procedimentos (SIGTAP) e referente a competência de apresentação da AIH.

A análise dos dados foi conduzida por meio de estatística descritiva, com o uso de medidas de tendência central, de dispersão, de distribuição e percentis.

 

Aspectos Éticos

Os relatórios de auditoria são documentos públicos, voltados para o diagnóstico e transparência da administração pública. Em atendimento à Lei de Acesso à Informação nº12.527, de 18 de novembro de 2011, devem ser disponibilizados a população (10).

As pesquisas envolvendo apenas dados de domínio público, que não identifiquem os participantes da pesquisa, ou apenas revisão bibliográfica, sem envolvimento de seres humanos, não necessitam aprovação por parte do Comitê de Ética em Pesquisa (11).

 

RESULTADOS

 

Entre fevereiro a julho de 2018, o serviço de auditoria produziu 14 relatórios (média 41,84 ±17,05), com a descrição da análise de 251 prontuários médicos. No mesmo período, foram registradas 2.260 internações hospitalares (média 376,67 ±33,95), com maior número nos meses de abril e julho. A proporção de prontuários auditados, por período, variou de 3,6% (fevereiro) a 16,1% (março). No total, 11,1% das internações foram auditadas, com valor menor que 10% nos meses de fevereiro e junho (Tabela 1).

 

Tabela 1. Proporção de prontuários avaliados pelo serviço municipal de auditoria, em relação ao total de internações hospitalares em São Bento do Sul, fevereiro a julho de 2018.

 

Internações

Prontuários auditados

(n)

(n)

(%)

Fevereiro

388

14

3,6

Março

361

58

16,1

Abril

394

60

15,2

Maio

377

46

12,2

Junho

320

39

12,2

Julho

420

34

8,1

Total

2260

251

11,1

Fonte: Relatórios de auditoria médica da Secretaria Municipal de Saúde de São Bento do Sul e Ministério da Saúde – Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS).

 

O valor total pago pelas internações no período foi de R$ 2.279.073,04, sendo R$ 1.860.504,53 em serviços hospitalares e R$ 418.568,51 em Serviços Profissionais. O valor médio, por competência, foi de R$ 379.845,51 (±46.110,28). O valor total glosado foi de R$ 46.890,78, com média, por competência, de R$ 7.815,13 (±2.576,56), que corresponde a 2,06% do faturamento decorrente das internações pelo SUS (Tabela 2).

 

Tabela 2. Distribuição dos valores pagos pelas internações e valores glosados pelo serviço municipal de auditoria em São Bento do Sul. Fevereiro a julho de 2018.

 

Valor da receita

Valor glosado

(R$)

(R$)

(%)

Fevereiro

358.153,11

3.707,43

1,04

Março

388.504,02

7.141,39

1,84

Abril

390.759,31

9.593,31

2,46

Maio

380.799,41

6.527,06

1,71

Junho

309.843,34

9.002,29

2,91

Julho

451.013,85

10.919,30

2,42

Total

2.279.073,04

46.890,78

2,06

Fonte: Relatórios de auditoria médica da Secretaria Municipal de Saúde de São Bento do Sul e Ministério da Saúde – Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS).

 

A constatação de irregularidade é o resultado da comparação entre um critério (norma ou legislação) e a situação encontrada. Um prontuário pode apresentar mais de uma constatação de irregularidade, dependendo do número de situações irregulares (9). Quando o auditor identifica uma constatação de irregularidade, o prontuário é classificado como “não conforme”.

No período estudado, o auditor médico avaliou 251 prontuários, dos quais classificou 146 (58,2%) como “não conforme”, devido a presença de 167 constatações de irregularidade (média de 1,14 por prontuário). A maioria dos prontuários apresentava uma constatação de irregularidade, mas em 18 prontuários foram identificadas duas constatações de irregularidade e em três prontuários três constatações de irregularidade (Tabela 3).

 

Tabela 3. Distribuição das internações glosadas e constatações de irregularidades, por competência, em São Bento do Sul, fevereiro a julho de 2018.

 

Internações auditadas

Internações glosadas

Constatações de irregularidades

 

(n)

(n)

(%)

(n)

(%)

Fevereiro

14

11

78,6

15

1,36

Março

58

39

67,2

41

1,05

Abril

60

23

38,3

27

1,17

Maio

46

21

45,7

22

1,04

Junho

39

29

74,4

39

1,34

Julho

34

23

67,6

23

1

Total

251

146

58,2

167

1,14

Fonte: Relatórios de auditoria médica da Secretaria Municipal de Saúde de São Bento do Sul e Ministério da Saúde – Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS).

 

A avaliação das glosas hospitalares permitiu identificar 16 tipos de constatações de irregularidade. No Quadro 1, estão descritas as constatações de irregularidade e os critérios adotados pelo serviço municipal de auditoria médica.

 

Quadro 1. Descrição das constatações de irregularidade identificadas pelo serviço municipal de auditoria médica no hospital geral de médio porte em São Bento do Sul, fevereiro a julho de 2018.

Constatação de irregularidade

Descrição

Procedimento especial não compatível com o CID.

Registro de procedimento especial não compatível com o diagnóstico, codificado através do Código Internacional de Doenças (CID).

Registro irregular do procedimento principal em situações caracterizadas como procedimento de diagnóstico e/ou atendimento de urgência.

O procedimento principal registrado é diferente do “Diagnóstico e/ou Atendimento de Urgência” (clínica médica, pediatria ou cirurgia) nos casos de: alta a pedido, evasão ou transferência para outro hospital, com período de internação igual ou inferior a 24 (vinte e quatro) horas; diagnóstico não confirmado com internação de curta permanência; tratamento de patologia de rápida resolução não codificada na tabela ou de internação para investigação diagnóstica e em casos passíveis de tratamentos ambulatoriais.

Registro na AIH de procedimento sem comprovação documental.

Ausência de documentação comprobatória de procedimentos registrados na AIH, como: relatório de cirurgia, evolução médica e/ou de outros profissionais, folha de gastos do centro cirúrgico e outros.

Documentos médicos ilegíveis incompletos e/ou com rasuras.

Prontuário médico ilegível, incompleto ou rasurado, de modo a impedir a interpretação no todo ou em parte dos registros.

Cobrança de Órteses, Próteses ou Materiais Especiais (OPM), sem a devida comprovação de aquisição e/ou uso do material.

Ausência de documentos comprovatórios da aquisição e uso de OPM, como: a etiqueta de identificação, cópia da nota fiscal e, para a comprovação de implantes de produtos radiopacos, os filmes radiológicos ou arquivos eletrônicos.

Procedimento principal não compatível com o quadro clínico.

O procedimento principal não é compatível com o quadro clínico descrito no prontuário médico. Neste caso, pode haver compatibilidade entre o procedimento e o CID, mas a descrição do caso não corresponde ao CID registrado e não é compatível com o tratamento realizado.

Emissão indevida de nova AIH para o mesmo usuário e na mesma internação.

Emissão indevida de nova AIH para o mesmo paciente e na mesma internação em situação não prevista no Manual Técnico Operacional do SIH (12).

Registro na AIH de exames complementares sem documentação comprobatória.

Ausência de documentos comprobatórios de exames complementares registrados na AIH. Os documentos variam de acordo com a natureza do exame, como: laudos, filmes e imagens.

Registro na AIH de exames complementares em número superior ao registrado no prontuário.

A quantidade de documentos comprovatórios de exames complementares é inferior ao registrado na AIH. Os documentos variam de acordo com a natureza do exame, como: laudos, filmes e imagens.

Cobrança via AIH de procedimentos cobrados via Autorização de Procedimento Ambulatoriais (APAC).

Cobrança via AIH de procedimentos ambulatoriais, que devem ser cobrados por meio da Autorização de Procedimentos Ambulatoriais (APAC).

Procedimentos cirúrgicos registrados na AIH são diferentes dos procedimentos constatados.

A descrição da cirurgia é divergente, no total ou em parte, da descrição no SIGTAP.  Os procedimentos cirúrgicos registrados na AIH devem ser compatíveis com a descrição no SIGTAP. Em muitos casos, esta constatação é identificada quando o relatório de cirurgia não é corroborado por outras fontes, como exames de imagem, exames anátomo patológicos, OPM, registros de gastos do centro cirúrgico, tempo de internação, sexo e idade do usuário e outras informações.

Registro incorreto do motivo de saída.

A AIH deve ser encerrada conforme a evolução do caso e de acordo com a codificação constante no Manual do Sistema SIH (12). O preenchimento incorreto deste item pode gerar informações errôneas, como o registro de óbito do mesmo usuário em internações diferentes.

Sobreposição dos períodos de internação.

Sobreposição dos dias de internação, no total ou em parte, em AIHs do mesmo usuário.

Cobrança de OPM em procedimentos eletivos sem autorização prévia.

Cobrança de OPM não autorizada pelo médico autorizador, sem a caraterização de imprevisibilidade durante o ato cirúrgico.

As internações para procedimentos eletivos devem conter a previsão do uso de OPM, para análise do médico autorizador.

Cobrança de tempos cirúrgicos como procedimentos separados.

Os tempos cirúrgicos são procedimentos ou manobras consecutivas realizadas pelo cirurgião desde o início ao término da cirurgia. Não configuram procedimentos separados e não podem ser cobrados individualmente.

Ausência de cobrança de procedimentos realizados.

Presença de procedimentos que geram valor de SH e/ou SP no prontuário médico, mas não estão registrados na AIH. Esta situação gera prejuízo financeiro para o hospital e para o profissional envolvido no procedimento.

Fonte: Relatórios de auditoria médica da Secretaria Municipal de Saúde de São Bento do Sul SC.

 

As constatações de irregularidade variavam de acordo com a complexidade e natureza do serviço prestado. Todavia, a maioria estava relacionada ao registro irregular do procedimento principal ou especial e a ausência de documentação comprobatória. A emissão indevida de nova AIH para o mesmo paciente na mesma internação, gera a cobrança irregular do procedimento principal e informações errôneas sobre o número de internações por competência (Tabela 4).

 

Tabela 4. Distribuição das constatações de irregularidades identificadas pelo serviço municipal de auditoria médica no hospital geral de médio porte em São Bento do Sul, fevereiro a julho de 2018.

Constatação de irregularidade

(n)

(%)

Procedimento especial não compatível com o CID.

11

6,6

Registro irregular do procedimento principal em situações caracterizadas como procedimento de diagnóstico e/ou atendimento de urgência.

46

27,5

Registro na AIH de procedimento sem comprovação documental.

36

21,6

Documentos médicos ilegíveis incompletos e/ou com rasuras.

3

1,8

Cobrança de órteses, próteses ou materiais especiais (OPM), sem a devida comprovação de aquisição e/ou uso do material.

10

6

Procedimento principal não compatível com o quadro clínico.

3

1,8

Emissão indevida de nova AIH para o mesmo usuário e na mesma internação.

13

7,8

Registro na AIH de exames complementares sem documentação comprobatória.

2

1,2

Registro na AIH de exames complementares em número superior aos registrados nos prontuários.

8

4,8

Registro na AIH de procedimentos cobrados via Autorização de Procedimento Ambulatoriais (APAC).

4

2,4

Procedimentos cirúrgicos registrados na AIH são diferentes dos procedimentos constatados.

9

5,4

Registro incorreto do motivo de saída.

11

6,6

Sobreposição dos períodos de internação.

2

1,2

Cobrança de OPM em procedimentos eletivos sem autorização prévia.

2

1,2

Cobrança de tempos cirúrgicos como procedimentos separados.

2

1,2

Ausência de cobrança de procedimentos realizados.

5

2,9

Total

167

100

Fonte: Relatórios de auditoria médica da Secretaria Municipal de Saúde de São Bento do Sul.

 

DISCUSSÃO

As auditorias médicas são solicitadas pelo gestor na suspeita de irregularidades, para o monitoramento dos serviços ou por solicitação de liberação de crítica pelo SIH/SUS. O fator promotor da auditoria municipal estudada foi a solicitação de liberação de crítica, devido a responsabilidade do gestor público autorizar ou não o processamento da AIH dos serviços sob sua responsabilidade (12). Contudo, isso não limita a auditoria somente para a questão motivadora da crítica, mas a todo o conteúdo do prontuário (7).

A modalidade de auditoria identificada foi a “retrospectiva” (após a alta do usuário). O critério de seleção dos prontuários justifica esta escolha, pois somente é possível avaliar as críticas no SIH/SUS após a digitação da AIH no sistema. A auditoria retrospectiva é mais utilizada nas áreas contábeis e financeira, visando identificar pagamentos irregulares em contas hospitalares (13). O uso de outras formas de auditoria, como a prospectiva (antes da efetivação dos procedimentos) ou concorrente (durante a internação) permite identificar as críticas antes da inclusão da AIH no sistema (3), mas não é possível conduzir a liberação antecipada (12).

O serviço de auditoria municipal revelou que 58,2% das internações apresentavam uma ou mais irregularidades. Este resultado foi superior ao encontrado em outros estudos, onde variava de 18% a 25,7% (14,15). O critério de seleção dos prontuários pode ter influenciado este valor, pois a escolha das internações pré-selecionadas pelo SIH/SUS (com indícios de inconformidades) aumenta a probabilidade de identificação de irregularidades.

Na auditoria de enfermagem, os materiais e medicamentos são os itens de contas hospitalares que mais impactam o total de glosas e, frequentemente, há mais de uma constatação de irregularidade por prontuário (16). Contudo, nos relatórios avaliados a maioria dos prontuários apresentava somente uma constatação de irregularidade, sendo a mais frequente o registro irregular do procedimento principal.

A complexidade das contas hospitalares, associado as particularidades do serviço de auditoria, podem influenciar o tipo e a quantidade de glosas hospitalares (17). No serviço de auditoria estudado há somente relatórios de auditoria médica, o que pode ter influenciado a especificidade e quantidade de constatações de irregularidades (17)

As glosas hospitalares podem ser totais ou parciais, de acordo com a gravidade da constatação de irregularidade. Neste estudo foram identificados os procedimentos glosados com os respectivos valores, pois glosas totais podem mascarar o objeto alvo da auditoria e superestimar seu impacto financeiro. Todavia, nem todas as constatações de irregularidade envolveram valores financeiros.

O registro incorreto do motivo de saída não gera a glosa da conta hospitalar, mas uma advertência para melhoria da qualidade dos registros. A inserção de dados incorretos nos sistemas de informação em saúde, como o SIH/SUS, prejudica o monitoramento dos serviços e, consequentemente, o planejamento e condução de políticas públicas de saúde (18).

As constatações de irregularidade mais frequentes foram o registro irregular do procedimento principal, em situações caracterizadas como procedimento de diagnóstico e/ou atendimento de urgência em clínica médica, pediatria ou cirurgia (27,5%), seguido pelo registro na AIH de procedimento sem documentação comprobatória (21,6%). Ambas levam a cobrança de valor maior que o devido, com prejuízo ao erário, e podem estar associadas a falhas no preenchimento da AIH, extravio de documentos, desconhecimento da legislação ou, até mesmo, má fé.

No período estudado, o valor glosado de R$ 46.890,78 correspondeu a somente 2,06% do faturamento decorrente das internações pelo SUS. Em estudos de glosas hospitalares em centros cirúrgicos, os valores glosados podem superar 50% do faturamento. Todavia, nestes estudos não é possível determinar o valor exato dos procedimentos criticados, pois muitos casos são glosas totais (13,14).

A auditoria médica não se limita as glosas hospitalares, mas também a questões de responsabilidade ética e legal. Os profissionais são responsáveis pela documentação apresentada e pelos atos descritos no prontuário (19). Várias constatações de irregularidade podem ser associadas a infrações ética, como: os registros médicos ilegíveis ou incompletos, a cobrança de tempos cirúrgicos como procedimentos separados e a cobrança de procedimentos não efetivamente realizados (20,21).

A identificação da prática de atos antieconômicos ou indevidos, como o registro na AIH de procedimento ou exame complementar sem comprovação documental, fomenta a recomendação ao gestor para correção ou ressarcimento dos valores pagos ao erário. No entanto, a constatação de atos ilegais ou má fé acarreta a responsabilização dos autores do ato e do gestor da instituição, com envio do caso para o Ministério Público (8).

No material examinado não há menção a ocorrência de comunicação das irregularidades ao Conselho Regional de Medicina ou Ministério Público. Contudo, os gestores e profissionais devem ficar atentos aos motivos das glosas hospitalares, de maneira a evitar perdas financeiras e complicações legais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise das glosas hospitalares evidenciou que a maioria estava associada a fatores preveníveis, como o registro irregular de procedimentos principais e ao lançamento de procedimentos diagnósticos sem a devida comprovação documental.

A caracterização e número de glosas hospitalares divergiu do encontrado em outras formas de auditorias, devido as características metodológicas e inerentes aos profissionais auditores. Este achado reforça a necessidade de equipes multiprofissionais de auditoria, com a participação de representantes de todas as profissões envolvidas no cuidado ao usuário.

O valor glosado, respectivo aos procedimentos e não ao total da conta hospitalar, demostra um baixo impacto financeiro para as instituições. Porém, representa perda de receita e possíveis implicações legais e éticas, com custos maiores e consequências mais graves à curto e longo prazo para gestores e profissionais.

A pouca representatividade dos prontuários auditados frente ao total de internações, demostra a necessidade de aperfeiçoar e intensificar as ações de auditoria, com o desenvolvimento de mecanismos mais eficazes de seleção. A pré-seleção, fundamentada no histórico de achados de auditoria da instituição, pode ser uma alternativa promissora, além de impor medidas corretivas para erros sistemáticos.

O médico auditor com o conhecimento da descrição e frequência das glosas pode realizar a busca ativa dos prontuários, potencializando a identificação de irregularidades. O gestor ciente dos motivos das glosas hospitalares pode instituir ou aperfeiçoar sistemas de análise das contas hospitalares, com o objetivo de reduzir as perdas e prevenir questões legais.

O conhecimento das características e frequência das glosas hospitalares pode auxiliar médicos auditores, gestores e, por consequência, o próprio usuário. No entanto, são necessários mais estudos sobre o assunto, especialmente sobre a auditoria médica, frequentemente apontada como fonte de conflito entre contratantes e prestadores de serviços de saúde.

 

 

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Recebido: 01 de janeiro de 2019. Aceito: 31 de março de 2020

Correspondência: Ricardo Larroyed de OliveiraE-mail: ricardo.larroyed@hotmail.com

Conflito de Interesses: os autores declararam não haver conflito de interesses.

 

 

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