Rev. Adm. Saúde (On-line), São Paulo, v. 20, n. 81: e259, jul. – set. 2020, Epub 10 dez. 2020

http://dx.doi.org/10.23973/ras.81.259

 

 

PERSPECTIVAS

 

Os 50 anos da Academia Nacional de Medicina e inflexões na qualidade da atenção à saúde

 

Donald M. Berwick, M.D.1, Christine K. Cassel, M.D.2

 

1. Institute for Healthcare Improvement, Boston MA

2. University of California, San Francisco CA

 

Relatórios acadêmicos raramente mudam o rumo de uma conversa sobre saúde, mas alguns sim. Vejam o Relatório Flexner sobre educação médica ou o relatório de 1964 do Surgeon General sobre tabagismo, por exemplo. A essa lista curta, o Instituto de Medicina (IOM, agora a Academia Nacional de Medicina - NAM) adicionou mais dois em 1999 e 2001: Errar é Humano e Cruzando o Abismo da Qualidade.

Esses dois documentos marcantes foram construídos em meio século de pesquisas sobre a medição da qualidade da assistência à saúde e a prevalência de graves problemas de qualidade. O professor Avedis Donabedian reuniu muito desse conhecimento na década de 1980, em sua obra Explorations in Quality Assessment and Monitoring. Na RAND Corporation, o Health Insurance Experiment e seu sucessor, o Medical Outcomes Study, forneceram um novo conjunto de ferramentas de medição de qualidade e descobriram cuidados "inadequados" generalizados - ou seja, uso excessivo de práticas ineficazes. O Harvard Medical Practice Study sobre mais de 30.000 registros médicos, no estado de Nova York, encontrou taxas inesperadamente altas de erros médicos evitáveis ​​e consequentes lesões e mortes de pacientes. Jack Wennberg e colegas, do Dartmouth Atlas Project mostraram uma variação geográfica enorme e inexplicável nas taxas de uso de procedimentos médicos e cirúrgicos, sem correlação aparente com os resultados. Vários relatórios de consenso anteriores do IOM documentaram a necessidade de melhorar o atendimento em lares de idosos (1986), serviços de emergência para crianças (1993), tecnologias de diagnóstico (1989) e cuidados de saúde comportamental (1997).

Em 1989, o Congresso criou a Agency for Health Care Policy and Research, que foi rebatizada de Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ) em 1999. Liderada inicialmente por John Eisenberg, a AHRQ tornou-se uma força importante para a pesquisa sobre a qualidade da assistência, estabelecendo uma câmara de compensação nacional para medidas e diretrizes.

Motivado pelo acúmulo de evidências científicas, em 1996 o IOM convocou uma Conferência sobre Qualidade da Assistência à Saúde, envolvendo pesquisadores e líderes de sistemas de saúde. Seu relatório resumiu os problemas de qualidade como "uso excessivo, subutilização e mau uso" e declarou: "existem problemas de qualidade graves e generalizados em toda a medicina americana [...] em todas as partes do país, e com frequência aproximadamente igual, no managed care e fee for service. Como resultado, um número muito grande de americanos é prejudicado". (3) Um relatório de 1999, do National Cancer Policy Board, do IOM, também concluiu que era ruim a qualidade geral no tratamento de câncer nos Estados Unidos. (4) O problema da “subutilização” iria adquirir importância outra vez, mais tarde, em 2003, quando Elizabeth McGlynn e colegas publicaram um estudo rigoroso, surpreendente e amplamente citado, mostrando que as pessoas nos Estados Unidos não receberam quase a metade dos cuidados cientificamente apropriados que deveriam receber. (5)

A conferência foi também reconhecida pela Comissão Consultiva do Presidente, na administração Clinton, sobre Proteção ao Consumidor e Qualidade na Indústria de Saúde. Embora sua formação tenha sido motivada por preocupações com o managed care, essa comissão rapidamente chegou a conclusões mais amplas, paralelas às da Mesa Redonda da IOM. Recomendou em seu relatório final de 1998, que dois novos órgãos fossem estabelecidos: uma parceria público-privada para desenvolver um conjunto comum de métricas de qualidade e uma agência federal, o Conselho Nacional de Qualidade, análogo à Securities and Exchange Commission, (do mercado de ações) para monitorar e relatar sobre a qualidade das organizações de saúde. O primeiro se tornou realidade em dois anos - o Fórum Nacional da Qualidade, que ainda existe. O segundo nunca foi criado e, como resultado, os Estados Unidos ainda carecem de um conjunto coerente de metas nacionais para a melhoria da saúde, com linhas claras de responsabilização.

Os relatórios do IOM de 1999 e 2001 chegaram a conclusões abrangentes sobre a necessidade de ação sobre a qualidade do atendimento. Notoriamente, To Err Is Human estimou que, entre 44.000 e 98.000 americanos morriam em hospitais, a cada ano, por causa de erros médicos, o que tornava os erros um dos maiores riscos de saúde pública do país, a terceira ou quarta principal causa de morte nos Estados Unidos, mais elevada do que câncer de mama, AIDS e acidentes automobilísticos.

Três temas, cientificamente fundamentados, inspiraram o relatório Chasm: primeiro, que os problemas de qualidade eram generalizados e caros, não se limitando a alguns mal intencionados ou agentes externos ao sistema de saúde; segundo, que uma solução não poderia se basear apenas em boas intenções, porque os defeitos refletiam condições profundamente arraigadas do próprio sistema de saúde, e, principalmente, não em falta de motivação ou competência da força de trabalho; e terceiro, que um grande redesenho do sistema prometia melhorar significativamente a qualidade do atendimento em todas as dimensões. O relatório atraiu atenção, em parte porque tinha uma estrutura convincente, que foi rapidamente adotada, envolvendo seis dimensões de qualidade (e objetivos de melhoria): segurança, eficácia, foco no paciente, oportunidade, eficiência e equidade.

Seguiram-se pelo menos 12 relatórios de qualidade do NAM. Estes incluíram uma série de estudos que traziam uma visão sistêmica de melhoria, sob a rubrica de “Aprendizagem na Organização de Saúde” e um relatório sobre a preparação de uma força de trabalho moderna, capaz de melhorar o sistema de saúde no qual ela trabalha. Relatórios recentes ampliaram a investigação sobre a qualidade do atendimento ambulatorial, o gerenciamento de doenças crônicas e a extensão e soluções para erros de diagnóstico.

Agora, duas décadas após o relatório Chasm, pode-se dizer que os resultados foram mistos. O progresso na melhoria da qualidade é inegável. As principais colaborações nacionais e internacionais, por exemplo, reduziram de forma mensurável as taxas de infecção adquirida na assistência à saúde, melhoraram o gerenciamento de doenças crônicas e tornaram o atendimento mais centrado no paciente. Por exemplo, o projeto Keystone ICU conduzido em mais de 100 unidades de terapia intensiva em Michigan, reduziu as infecções venosas em 66%, em 18 meses. Mas a melhoria sistêmica, na qualidade do atendimento, tem se mostrado difícil de dimensionar. As melhorias tendem a permanecer locais em vez de se expandir. Muitos líderes de saúde, submetidos a pressões financeiras, diminuíram seu foco estratégico na melhoria da qualidade.

Embora muitas organizações de saúde tenham incorporado os seis “Objetivos de Melhoria” da IOM em suas declarações de missão e planos estratégicos, na realidade controlar custos e manter receitas, sem um compromisso profundo simultâneo com a melhoria da qualidade, tornaram-se as preocupações dominantes. A tese principal de que a melhor maneira de controlar custos é melhorar a qualidade dos processos, produtos e serviços, ao mesmo tempo que reduz o desperdício, o que é praticamente doutrinário agora em muitos setores, nunca penetrou profundamente nas estratégias da maioria das organizações de saúde.

Mais e mais consumidores, empregadores e pagadores públicos e privados identificaram a necessidade de substituir “pagamento baseado em volume" por "pagamento baseado em valor" para que o pagamento reflita as experiências e resultados dos pacientes, em vez de apenas o número de serviços prestados. Em teoria, essa responsabilidade agora se tornou possível pela ciência da medição, e abundam os esquemas de medição e “pagamento por desempenho”. Mas a retórica sobre o foco na qualidade e nos resultados ultrapassa em muito o progresso real. A maioria dos pagamentos continua sendo uma taxa por serviço e, além disso, existem evidências perturbadoras de que as formas de responsabilidade que foram adotadas afetaram seriamente a moral dos médicos, mesmo com o progresso em qualidade e segurança estagnado. Os Estados Unidos ainda precisam encontrar para os cuidados de saúde o equilíbrio mais sábio entre a responsabilidade, que é crítica, e o suporte para uma cultura de crescimento e aprendizagem confiável, que, como afirma o NAM, é a base essencial para a melhoria contínua. (6)

O movimento de melhoria também foi prejudicado, em parte, pela relutância dos líderes políticos em endossar totalmente novos modelos de pagamento e conhecimento de quais tratamentos realmente funcionam melhor como uma base mais racional para as políticas de cobertura e decisões de cuidados, o que nos permitiria perseguir melhores resultados com menor custo, reduzindo o desperdício. De fato, apenas por aumentar a eficácia em termos de custo como foco, o AHRQ quase foi eliminado do orçamento federal em 1994, graças ao lobby do setor. Da mesma forma, o Affordable Care Act (ACA) criou o Patient-Centered Outcomes Research Institute para definir as prioridades da pesquisa sobre a relação custo-eficácia, mas o componente "custo", que é necessário para permitir a comparação de abordagens alternativas para o tratamento, foi banido após retórica de “racionamento” ter vencido politicamente.

Os cuidados de saúde e a sociedade dos EUA mudaram substancialmente desde que os relatórios do IOM foram publicados há vinte anos. Muitas dessas mudanças têm potencial para o chamado Objetivo Triplo de melhor cuidado para os indivíduos, melhor saúde para as populações e custos mais baixos. As inovações incluem, por exemplo, ciência da informação digital, ampliação da atenção aos cuidados pós-agudos, crescente consciência dos determinantes sociais da saúde e muitas novas formas de pagamento baseado em risco. Mas essas mudanças podem ter dois gumes, trazendo novos riscos e incertezas junto com ganhos potenciais. Todos requerem um escrutínio científico, clínico e ético para ajudar os médicos e as organizações a navegar em direção a verdadeiras melhorias de qualidade.

Neste terreno de mudança, os legisladores e líderes de saúde precisarão de avanços contínuos na ciência da melhoria da qualidade, inovação nos modelos de pagamento e coragem para domar as forças do interesse próprio e da ignorância que continuam a impulsionar os custos crescentes e permitir sérios defeitos de qualidade persistir. O apoio filantrópico federal e privado é essencial para inovações e experimentos no redesenho ousado da prestação de cuidados, como os esforços para desenvolver cuidados integrados apoiados pela ACA por meio do Centro de Inovação do Medicare e Medicaid

A crise da covid-19 revelou claramente o quão extremamente necessárias e viáveis ​​podem ser essas reformulações. Melhorar a qualidade do atendimento à saúde nos Estados Unidos precisa se tornar uma prioridade nacional. A serviço desse objetivo, acreditamos que é chegada a hora de finalmente agirmos sobre a convocação de uma agência federal de supervisão nacional, independente e apolítica para avaliação e melhoria da qualidade dos cuidados de saúde - uma convocação que tem sido repetida em todos os principais estudos sobre qualidade assistencial da saúde nos Estados Unidos ao longo do último meio século, mas que ainda não foi atendida.

 

 

 

Este artigo é reprodução em tradução livre do original:

 

The NAM and the Quality of Health Care — Inflecting a Field

Donald M. Berwick, M.D., and Christine K. Cassel, M.D.

N Engl J Med 2020; 383:505-508

DOI: 10.1056/NEJMp2005126

 

 

 

 

 

 

 

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