Rev. Adm. Saúde (On-line), São Paulo, v. 22, n. 87: e327, abr. – jun. 2022, Epub 25 jul. 2022

http://dx.doi.org/10.23973/ras.87.327

 

 

PERSPECTIVA

 

Médicos espalhando desinformação nas mídias sociais – ainda existem respostas certas ou erradas na medicina?

Physicians Spreading Misinformation on Social Media — Do Right and Wrong Answers Still Exist in Medicine?

 

 

Richard J. Baron, M.D.1,

Yul D. Ejnes, M.D.2

 

 

1.     American Board of Internal Medicine, Philadelphia PA

2.     Brown University, Providence RI

 

 

 

 

A medicina tem um problema de verdade. Na era das mídias sociais e da ciência fortemente politizada, a “verdade” é cada vez mais baseada na opinião da maioria: se um número suficiente de pessoas gostar, compartilhar ou optar por acreditar em algo, outros irão aceitá-lo como verdade. Essa maneira de determinar a “verdade” não envolve métodos científicos; em vez disso, confia na “sabedoria das multidões”, que tem um poder particular em uma sociedade democrática em que os líderes e as políticas são escolhidas pela vontade da maioria. Tais escolhas pressupõem conceitos como o de liberdade. Mas eles podem não ser úteis para determinar se um prédio irá desmoronar, se os freios do seu carro vão funcionar ou se um medicamento ou vacina são eficazes.

A crescente fidelidade aos “fatos” endossados ​​pela multidão representa um sério desafio para as instituições e estruturas que a medicina desenvolveu para proteger o público e garantir que as pessoas possam dizer quem pode ou não ser confiável como profissional médico ou confiável pelo seu conhecimento científico. Essas estruturas incluem a formação médica, o licenciamento e a certificação pelos conselhos e os líderes, de todas essas áreas estão lutando para saber como responder às afirmações dos médicos nas mídias sociais que não são apoiadas por evidências e podem prejudicar os pacientes. O Cirurgião Geral dos EUA identificou a desinformação médica como uma grande ameaça à saúde pública e muitas sociedades profissionais, incluindo a Associação Médica Americana, pedem ações para combatê-la.

A questão do que os médicos podem e não podem dizer nas mídias sociais tem sido muito debatida por estudiosos do direito e em revistas médicas. Coleman observou que o “discurso profissional” é um domínio legalmente contestável que se situa entre o discurso que pode ser regulamentado ou proibido por conselhos profissionais e o discurso protegido pela Primeira Emenda da Constituição. Também não está claro quando o discurso dos médicos nas mídias sociais constitui “práticas médicas”, que podem ser menos prejudiciais e são proibidos. (2)

Os conselhos profissionais – organizações privadas, não governamentais e sem fins lucrativos, criadas pela profissão para emitir credenciais para médicos especialistas – têm ferramentas necessárias para ajudar a resolver o problema de informações falsas nas mídias sociais. Embora muitas instituições de saúde tenham optado por exigir a certificação do conselho como uma credencial para o emprego, a certificação – ao contrário de uma licença estadual – não é legalmente exigida para praticar medicina em qualquer lugar nos Estados Unidos. Tornar-se certificado pelo Conselho Americano de Medicina Interna (ABIM), o maior conselho em medicina interna ou uma das vinte e uma subespecialidades requer passar por um exame. E para manter o certificado, o médico deve passar por exames ao longo de sua carreira para demonstrar que se mantem atualizado. Esse requisito ajuda a garantir que os médicos estejam praticando medicina baseada em evidências, apoiada pelas mais recentes pesquisas revisadas por pares, com o objetivo de proteger o bem-estar e a segurança do paciente.

A criação desses exames envolve reunir médicos especialistas acadêmicos e praticantes de um campo específico para elaborar perguntas críticas de múltipla escolha que tenham uma única melhor resposta - processo que pode fornecer uma perspectiva útil sobre esforços um tanto análogos para avaliar as informações que médicos e outros divulgam nos canais públicos informais, como as redes sociais. O desafio de elaborar questões de múltipla escolha não é construir uma questão com uma resposta certa; em vez disso, devem se criar “distratores”, as respostas erradas, mas plausíveis. Como qualquer pessoa que fez um exame de múltipla escolha sabe, mesmo alguém sem conhecimento do campo relevante pode passar em um teste quando as respostas erradas são obviamente implausíveis. Uma pergunta mede algo importante apenas se alguém familiarizado com o campo pode acreditar que as respostas erradas estão corretas. Os médicos especialistas passam a maior parte do tempo debatendo os “distratores”: essa resposta está realmente errada? Se alguém ao redor da mesa puder encontrar um artigo válido que possa apoiar a escolha da opção C como correta, então a opção C não pode ser usada como distração. Nessas discussões, os especialistas são guiados pela literatura médica revisada por pares, não pela “opinião predominante” ou pelo que um membro do comitê acredita; eles não fazem pesquisas. Eles aceitam os métodos subjacentes aos estudos científicos como um guia mais seguro para a prática do que a sabedoria percebida, a intuição ou mesmo o “processo democrático”. Informados por essa literatura, eles concluem que algumas respostas estão definitivamente erradas.

Em 29 de julho de 2021, a Federação dos Conselhos Médicos Estaduais (FSMB), a organização guarda-chuva dos conselhos profissionais estaduais e territoriais, emitiu uma declaração orientadora dizendo que “os médicos que geram e espalham desinformação ou especificamente, desinformação sobre a vacina covid-19 correm o risco de ação disciplinar pelo estado, incluindo a suspensão ou revogação de sua licença médica.” (3) Em setembro, a ABIM, juntamente com nossos colegas do American Board of Pediatrics e do American Board of Family Medicine, emitiu uma declaração apoiando a posição do FSMB, dizendo: “todos procuramos médicos certificados para fornecer atendimento e orientação; fornecer informações erradas sobre uma doença letal é antiético, antiprofissional e perigoso.” (4) Também em setembro, o Conselho de Examinadores Médicos do Tennessee adotou uma política que se assemelha a do FSMB, o que levou a legislatura do estado do Tennessee a aprovar uma lei em novembro permitindo ao conselho profissional de tomar medidas disciplinares contra qualquer médico por qualquer tratamento indevido oferecido a um paciente com covid. Leis semelhantes estão agora sendo consideradas em 24 outros estados. (5)

A ABIM há muito tempo tem uma política de que o comportamento não profissional ou antiético pode levar à revogação de um certificado ABIM. Em outubro, emitimos uma declaração de política deixando claro que “fornecer informações falsas ou imprecisas aos pacientes ou ao público é antiprofissional e antiético e viola a confiança que a profissão de medicina e o público têm na Certificação do Conselho da ABIM. Portanto, tal conduta constitui fundamento para sanções disciplinares.” Depois que fizemos esta declaração, recebemos uma série de relatórios alegando violações desta política por médicos específicos.

Como a credencial tem importância substancial para nossos médicos e porque sempre buscamos justiça nas nossas deliberações, temos um processo disciplinar de sanções e apelações, dando ampla oportunidade do contraditório para os médicos, que enfrentam sanções contarem sua versão e serem representados por advogados. Usamos esse processo ao longo dos anos em resposta a vários casos de conduta não profissional e antiética, incluindo trapaça e atividades criminosas e outras, por parte de médicos que podem ou não ter desencadeado ação disciplinar por conselhos profissionais estaduais. O processo às vezes resulta na rescisão temporária ou permanente da certificação da ABIM após análise e consideração por painéis compostos por membros de nossa equipe profissional e pares do médico. Enfrentamos - e continuamos envolvidos - litígios caros, defendendo a integridade de nosso processo em tribunal contra vários desafios legais. Os tribunais têm apoiado nosso direito de fazer julgamentos sobre o status de certificação dos médicos a quem concedemos a credencial.

À medida que a ABIM enfrenta o perigo da desinformação médica, reconhecemos que existem muitas questões clínicas sobre as quais os médicos têm legitimamente um espectro de opiniões, todas apoiadas por evidências; tais posições justificáveis ​​não seriam “distratoras” em nosso exame, nem atenderiam à nossa definição de “informação falsa”, conforme determinado por especialistas consultando a literatura. Toda uma gama de afirmações com as quais muitos – ou mesmo a maioria – dos médicos podem discordar, portanto, não desencadeariam um processo disciplinar. Por outro lado, quando alguém certificado pela ABIM diz algo como “a origem de todas as doenças coronárias é um defeito arterial claramente reversível” ou “crianças não podem transmitir covid” ou “vacinas não previnem mortes ou hospitalizações por covid”, não estamos lidando com desacordo profissional válido; estamos lidando com respostas erradas.

Com quase um milhão de americanos mortos por covid e mortes – sendo algumas mortes claramente evitáveis ​​– continuando a uma taxa de mais de 200.000 por ano, tornou-se imperativo para nossa profissão capacitar nossas instituições para sinalizar claramente quem é – e quem não é — capaz de fornecer informações baseadas em evidências. Nós, médicos, precisamos usar as instituições que criamos para autorregulação profissional para manter a confiança do público, estabelecendo alguns limites reconhecíveis. Nem sempre há respostas certas, mas algumas respostas estão claramente erradas.

 

 

REFERÊNCIAS

1.            Coleman C. License revocation as a response to physician misinformation: proceed with caution. Health Affairs Forefront, January 5, 2022. https://www.healthaffairs.org/do/10.1377/forefront 20211227.966736/

2.            Mello MM. Vaccine misinformation and the First Amendment — the price of free speech. JAMA Health Forum 2022;3(3):e220732. https://jamanetwork.com/journals/jama-health-forum/fullarticle/2790169

3.            Spreading COVID-19 vaccine misinformation may put medical license at risk. Washington, DC: Federation of State Medical Boards, July 29, 2021. https://www.fsmb.org/advocacy/news-releases/fsmb-spreading-covid-19-vaccine-misinformation-may-put-medical-license-at-risk/

4.            Newton W, Baron RJ, Nichols DG. Joint statement on dissemination of misinformation. Philadelphia: American Board of Internal Medicine, September 9, 2021. https://www.abim.org/media-center/press-releases/joint-statement-on-dissemination-of-misinformation/

5.            Baron RJ, Emanuel EJ. Politicians should not be deciding what constitutes good medicine. Stat News, March 7, 2022. https://www.statnews.com/2022/03/07/politicians-should-not-be-deciding-what-constitutes-good-medicine/

 

 

 

 

Tradução livre de:

N Engl J Med July 21, 2022 Vol. 387 No. 3

https://doi.org/10.1056/NEJMp2204813

 

 

 

 

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